Segue sugestão para exploração do gênero crônica
- Aula ( 03/04 aulas)
- Conteúdo: - Gênero Crônica
- Objetivos:
- Aproximar os alunos do gênero crônica.
- Distinguir o tom de lirismo, ironia, humor ou reflexão em diferentes crônicas.
- Ler crônicas escritas nos séculos XIX, XX e XXI.
- Apresentar biografia de cronistas
- Conversa informal, chamada e correção da atividade
de casa.
- Divisão da classe em grupo para leitura de algumas
crônicas para identificação do assunto e biografia de seus respectivos cronistas.
*Que sentimentos e emoções a crônica despertou:
*A linguagem era atual:
*Qual a personagem ou personagens?
*O autor fazia parte da situação narrada ou estava
como observador, de fora?
* Fale um pouco sobre o cronista.
Anexos:
Crônicas para cada equipe:
A Rua do Ouvidor (Joaquim Manuel de Macedo)
A Rua do Ouvidor contou
diversas lojas de perfumarias, e, por consequência, devia ser a rua mais
cheirosa, mais perfumada entre todas as da cidade do Rio de Janeiro.
E todavia não o era!...
Com efeito não havia nem há
rua mais opulenta de aromas, de perfumes, de pastilhas odoríferas, de banhas e
de pomadas de ótimo cheiro; mas tudo isso encerrado em vidrinhos, em frascos e
em pequenas caixas bonitas que mantinham e mantêm a Rua do Ouvidor tão inodora
como as outras de dia.
Atualmente de noite
observa-se o mesmo fato.
Naquele tempo, porém, isto é,
nos tempos do Demarais, e ainda depois, a Rua do Ouvidor, de fácil e reta
comunicação com a praia, era uma das mais frequentadas pelos condutores dos
repugnantes barris, das oito horas da noite até às dez.
A esses barris asquerosos o
povo deu a denominação geralmente adotada de - tigres - pelo medo explicável
que todos fugiam deles.
Esse ruim costume do passado
me traz à memória informação falsa e ridícula que li, e caso infeliz e
igualmente ridículo, de que fui testemunha ocular e nasal em 1839, no meu
saudoso tempo de estudante.
A informação é a seguinte:
Um francês (viajante charlatão)
passou pela cidade do Rio de Janeiro, e demorando-se nela alguns dias, ouviu
dos patrícios da Rua do Ouvidor queixas dos incômodos tigres que frequentes
passavam ali de noite. Sábio e consciencioso observador que era, o viajante
tomou nota do ato, e poucos anos depois publicou, no seu livro de viagens, esta
famosa notícia:
"Na cidade do Rio de
Janeiro, capital do Império do Brasil, feras terríveis, os trigraves, vagam,
durante a noite, pelas ruas, etc., etc.!!!"
E é assim que escreve a história!
O caso que observei foi
desastroso, mas de natureza que fez rir a todos.
Pouco depois das oito horas
da noite, um inglês, trajando casaca preta e gravata branca...
Entre parêntese.
Em 1839 ainda era de uso
ordinário e comum a casaca; o reinado de paletó começou depois; muitos
estudantes iam às aulas de casacas, e não havia senador nem deputado que se
apresentasse desacasacado nas respectivas Câmaras: o paletó tornou-se
eminentemente parlamentar de 1845 em diante.
Fechou-se o parênteses.
O inglês de chapéu de
patente, casaca preta e gravata branca subia pela Rua do Ouvidor, quando
encontrou um negro que descia, levando à cabeça um tigre para despejá-lo no mar.
O pobre africano ainda a
tempo recuou um passo, mas o inglês que não sabia recuar avançou outro; o
condutor do tigre encostou-se à parede que lhe ficava à mão direita, e o inglês
supondo-se desconsiderado por um negro que lhe dava passo à esquerda pronunciou
a ameaçadora palavra goodemi, e sem mais tir-te nem guar-te honrou com um soco
britânico a face do africano, que perdendo o equilíbrio pelo ataque e pela dor,
deixou cair o tigre para diante e naturalmente de boca para baixo.
Ah! Que não sei de nojo como
o conte!
O Tigre ou o barril abismou
em seu bojo o chapéu e a cabeça e inundou com o seu conteúdo a casaca preta, o
colete e as calças do inglês.
O negro fugiu acelerado, e a
vítima de sua própria imprudência, conseguindo livrar-se do barril, que o encapelara,
lançou-se a correr atrás do africano, sacudindo o chapéu em estado indizível, e
bradando furioso:
- Pegue ladron! Pegue
ladron!...
Mas qual - pega ladron! -:
todos se arredavam de inocente e malcheiroso negro que fugia, e ainda mais o
inglês, tornado tigre pela inundação que recebera.
Era geral o coro de risadas
na Rua do Ouvidor.
O inglês, perdendo enfim de
vista o africano, completou o caso com um remate pelo menos tão ridículo como o
seu desastre. Voltando rua acima, parou em frente de numeroso grupo de gente
que testemunhara a cena, e ria-se dela.
Ainda hoje o estou vendo; o
inglês parou, e sempre a sacudir o chapéu olhou iroso para o grupo e disse mas
disse com orgulhosa gravidade britânica:
- Amanhã faz queixa a
ministro da Inglaterra, e há de ter indenização de chapéu e de casaca perdidas.
Ah! Eu creio que então a
melhor das risadas que romperam foi a minha gostosa, longa e repetida risada de
estudante feliz e alegrão.
É inútil dizer que não houve
questão diplomática. A Inglaterra ainda não se tinha feito representar no
Brasil por Mr. Christie, o único capaz (depois do jantar) de exigir indenização
do chapéu e da casaca que o patrício perdera.
Não foi este único desastre
que os tigres ocasionaram, foram muitos e todos mais ou menos grotescos, e sei
de um outro (além da encapelação do inglês) ocorrido na Rua do Carmo hoje Sete
de Setembro, que de súbito desfez as mais doces esperanças do casamento
inspirado e desejado por mútuo amor.
O namorado era estudante,
meu colega e amigo; estava perdidamente apaixonado por uma viúva, viuvinha de
dezoito anos, e linda como os amores.
Uma noite, a bela senhora
estava à janela, e à luz de fronteiro lampião viu o namorado que, aproveitando
o ponto do mais vivo clarão iluminador, lhe mostrava, levando-o ao nariz, um
raminho de lindas flores, que ia enviar-lhe, quando nesse momento o cego
apaixonado esbarrou com um condutor de tigre, e, embora não encapelado, foi
quase tão infeliz como o inglês.
O pior do caso foi que a
jovem adorada incorreu no erro quase inevitável de desatar a rir, e logo depois
de fugir da janela por causa do mau cheiro de que se encheu a rua.
O namorado ressentiu-se do
rir impiedoso da sua esperançosa e querida noiva; amoroso, porém, como estava,
dois dias depois tornou a passar diante das queridas janelas.
No erro; a formosa viúva, ao
ver o estudante, saudou-o doce, ternamente, mas levou o lenço a boca para
dissimular o riso lembrador de ridículo infortúnio.
O estudante deu então solene
cavaco, e não apareceu mais à bela viuvinha.Um tigre matou aquele amor.
Memórias da Rua do Ouvidor.
Rio de Janeiro: Perseverança, 1878.
Falemos das flores (25 de novembro de 1855) José de Alencar
Falemos das flores.
O que é uma flor?
Será esta criação vegetal
que na primavera se abre do botão de uma planta?
Não: a flor é o tipo da
perfeição, é a mais sublime expressão da beleza, é um sorriso cristalizado, é
um raio de luz perfumado.
Por isso há muitas espécies
de flor.
Há as flores do vale -
mimosas criaturas que vivem o espaço de um dia, que se alimentam de orvalho, de
luz e de sombras.
Há as flores do céu - as
estrelas, - que brilham à noite no seu manto azul, como os olhos de uma linda
pensativa.
Há as flores do ar - as
borboletas, - que têm nas suas asas ligeiras as mais belas cores do prisma.
Há as flores da terra - as
mulheres, - rosas perfumadas que ocultam entre as folhas os seus espinhos.
Há as flores dos lábios - os
sorrisos, lindas boninas que o menor sopro desfolha.
Há as flores do mar - as pérolas,
- filhas do oceano que saem do seio das ondas para se aninharem no seio de uma
mulher morena.
Há as flores da poesia - os
versos, - às vezes tão cheios de perfumes e de sentimentos como a mais bela
flor da primavera.
Há as flores d'alma - os
sentimentos, - flores a que o coração serve de vaso, e as lágrimas de orvalho.
Há as flores da religião -
as preces, - modestas violetas que perfumam a sombra e o retiro.
Há as flores da harmonia -
os gorjeios - que brincam nos lábios mimosos de uma boquinha sedutora.
Há as flores do espírito -
os ziguezagues, - que nascem sobre o papel como rosas silvestres e sem cultura.
(Não falo dos nossos
ziguezagues, que, quando muito, são flores murchas).
Há enfim uma espécie de flor
que é tão rara como a tulipa negra de Alexandre Dumas, como o cravo azul de
Jean-Jacques, como o crisântemo azul de George Sand.
É a flor da vida, este sonho
dourado, este puro ideal a que todos aspiram e de que tão poucos gozam.
Porque a flor da vida apenas
vive um dia, como as rosas da manhã que a brisa da tarde desfolha.
E quando murcha, deixa
dentro d'alma os seus perfumes, que são essas recordações queridas que nos
sorriem ainda nos últimos tempos da existência.
Para uns a flor da vida
nasce nos lábios de uma mulher; para outros no seio de um amigo.
Feliz do caminhante que à
beira do bosque por onde passa colhe esta florzinha azul, espécie de urze
cingida de uma coroa de espinhos.
Muitas vezes, depois de
muitas fadigas, quando já tem as mãos feridas dos espinhos, e que vai colher a
flor, ela se desfolha.
O vento soprou sobre ela, ou
um verme roeu-lhe os estames.
Até aqui os meus leitores têm
visto o mundo pelo prisma de uma flor; mas não se devem iludir com isso.
Algum velho político de cabelos
brancos lhes dirá que isto são simples devaneios de uma imaginação exaltada.
A flor é a poesia, mas o
fruto é a realidade, é a única verdade da vida.
Enquanto pois os poetas
vivem à busca de flores, os homens sérios e graves, os homens práticos só
tratam de colher os frutos.
Eles veem desabrochar as
flores, exalar os seus perfumes, e esperam como o hortelão que chegue o outono
e com ele o tempo da colheita.
E na verdade, a flor encerra
sempre o germe de um fruto, de um pomo dourado, que outrora perdeu o homem, mas
que é hoje a sua salvação.
A explicação disto me
levaria muito longe, se eu não me lembrasse que até agora ainda não escrevi uma
linha de revista, e ainda não dei aos meus leitores uma notícia curiosa.
Mas, a falar a verdade, não
me agrada este papel de noticiador de coisas velhas, que o meu leitor todos os
dias vê reproduzidas nos quatro jornais da corte, em primeira, segunda, e
terceira edição.
Poderia dizer-lhe que depois
da epidemia vai-se revelando uma outra epidemia de divertimentos, realmente
assustadora.
Fala-se em clube artístico,
em baile mascarado no teatro lírico, em passeios de máscaras pelas ruas, numa
companhia francesa de vaudevilles, e em mil outras coisas que tornarão esta
bela cidade do Rio de Janeiro um verdadeiro paraíso.
Neste tempo é que os
folhetinistas baterão as asas de contentes, e não terão trabalho de escrever
tiras de papel; preferirão ir ao baile, ao passeio, ao teatro, colher as flores
de que hão de formar o seu bouquet de domingo.
Enquanto porém não chega
esta bela quadra, essa primavera dos nossos salões, esse abril florido da nossa
sociedade, não há remédio senão contentarmo-nos com o que temos, e em vez de
rosas, apresentar ao leitor as folhas secas do ano.
A respeito de teatro, não
falemos; é uma casa em cujo pórtico (digo pórtico figuradamente) a prudência
parece ter gravado a inscrição de Dante: - Guarda e passa.
Se desprezais o aviso e
entrais, daí a pouco tereis razão de arrepender-vos.
Sentai-vos em uma cadeira
qualquer: a vossa direita está um gruísta; a vossa esquerda um chartonista.
Levanta-se o pano:
representa-se a Norma ou a Fidanzata Corsa; canta uma das duas prima-donas, uma
das duas prediletas do público.
- Bravo! grita o gruísta
entusiasmado.
- Que exageração! diz o
chartonista estirando o beiço.
- Divino!
- Oh! é demais!
- Sublime!
- Insuportável!
E assim neste crescendo
continuam os dois dilettanti, de maneira que o vosso ouvido direito está sempre
em completa oposição com o vosso ouvido esquerdo.
Cai o pano.
No intervalo conversai um
pouco com os vossos vizinhos.
- É preciso ser
completamente ignorante, diz o gruísta com o aplomb de um maestro, para não se
apreciar a sublimidade do talento desta mulher!
Vós, meu leitor, que não
quereis assinar um termo de ignorante, não tendes remédio senão confessar-vos
gruísta, e em lugar de dois pontos de admiração dais três.
- Com efeito, é uma artista
exímia!!!
Apenas acabais a palavra,
quando o chartonista vos interroga do outro lado.
- É possível que um homem de
gosto e de sentimento admita semelhantes exagerações?
Ficais embatucado; mas, se não
quereis passar por homem de mau gosto, deveis imediatamente responder:
- Com efeito, não é natural.
Daí a um momento o vosso
vizinho da direita retruca:
- Veja, todos os camarotes
da 4a ordem estão vazios.
- É verdade!
Torna o vizinho esquerdo:
- Com esta chuva, que casa,
hem!
- Boa!
Agora acrescentai a isto as
desafinações do Dufrene, a rouquidão do Gentile, os cochilos do contra-regra, e
fazei ideia do divertimento de uma noite de teatro.
Ao correr da pena. 2ª ed. São
Paulo: Melhoramentos, s/d.
Ser brotinho (Paulo Mendes
Campos)
Ser brotinho não é viver em
um píncaro azulado: é muito mais! Ser brotinho é sorrir bastante dos homens e
rir interminavelmente das mulheres, rir como se o ridículo, visível ou invisível,
provocasse uma tosse de riso irresistível.
Ser brotinho é não usar
pintura alguma, às vezes, e ficar de cara lambida, os cabelos desarrumados como
se ventasse forte, o corpo todo apagado dentro de um vestido tão de propósito
sem graça, mas lançando fogo pelos olhos. Ser brotinho é lançar fogo pelos
olhos.
É viver a tarde inteira, em
uma atitude esquemática, a contemplar o teto, só para poder contar depois que
ficou a tarde inteira olhando para cima, sem pensar em nada. É passar um dia
todo descalça no apartamento da amiga comendo comida de lata e cortar o dedo.
Ser brotinho é ainda possuir vitrola própria e perambular pelas ruas do bairro
com um ar sonso-vagaroso, abraçada a uma porção de elepês coloridos. É dizer a
palavra feia precisamente no instante em que essa palavra se faz imprescindível
e tão inteligente e superior. É também falar legal e bárbaro com um timbre tão
por cima das vãs agitações humanas, uma inflexão tão certa de que tudo neste
mundo passa depressa e não tem a menor importância.
Ser brotinho é poder usar óculos
enormes como se fosse uma decoração, um adjetivo para o rosto e para o espírito.
É esvaziar o sentido das coisas que os coroas levam a sério, mas é também dar
sentido de repente ao vácuo absoluto. Aguardar na paciente geladeira o momento
exato de ir à forra da falsa amiga. É ter a bolsa cheia de pedacinhos de papel,
recados que os anacolutos tornam misteriosos, anotações criptográficas sobre o
tributo da natureza feminina, uma cédula de dois cruzeiros com uma sentença
hermética escrita a batom, toda uma biografia esparsa que pode ser atirada de súbito
ao vento que passa. Ser brotinho é a inclinação do momento.
É telefonar muito, demais,
revirando-se no chão como dançarina no deserto estendida no chão. É querer ser
rapaz de vez em quando só para vaguear sozinha de madrugada pelas ruas da
cidade. Achar muito bonito um homem muito feio; achar tão simpática uma senhora
tão antipática. É fumar quase um maço de cigarros na sacada do apartamento,
pensando coisas brancas, pretas, vermelhas, amarelas.
Ser brotinho é comparar o
amigo do pai a um pincel de barba, e a gente vai ver está certo: o amigo do pai
parece um pincel de barba. É sentir uma vontade doida de tomar banho de mar de
noite e sem roupa, completamente. É ficar eufórica à vista de uma cascata.
Falar inglês sem saber verbos irregulares. É ter comprado na feira um
vestidinho gozado e bacanérrimo.
É ainda ser brotinho chegar
em casa ensopada de chuva, úmida camélia, e dizer para a mãe que veio andando
devagar para molhar-se mais. É ter saído um dia com uma rosa vermelha na mão, e
todo mundo pensou com piedade que ela era uma louca varrida. É ir sempre ao
cinema, mas com um jeito de quem não espera mais nada desta vida. É ter uma vez
bebido dois gins, quatro uísques, cinco taças de champanha e uma de cinzano sem
sentir nada, mas ter outra vez bebido só um cálice de vinho do Porto e ter dado
um vexame modelo grande. É o dom de falar sobre futebol e política como se o
presente fosse passado, e vice-versa.
Ser brotinho é atravessar de
ponta a ponta o salão da festa com uma indiferença mortal pelas mulheres
presentes e ausentes. Ter estudado ballet e desistido, apesar de tantos
telefonemas de Madame Saint-Quentin. Ter trazido para casa um gatinho magro que
miava de fome e ter aberto uma lata de salmão para o coitado. Mas o bichinho
comeu o salmãoe morreu. É ficar pasmada no escuro da varanda sem contar para
ninguém a miserável traição. Amanhecer chorando, anoitecer dançando. É manter o
ritmo na melodia dissonante. Usar o mais caro perfume de blusa grossa e
blue-jeans. Ter horror de gente morta, ladrão dentro de casa, fantasmas e
baratas. Ter compaixão de um só mendigo entre todos os outros mendigos da
Terra. Permanecer apaixonada a eternidade de um mês por um violinista
estrangeiro de quinta ordem. Eventualmente, ser brotinho é como se não fosse,
sentindo-se quase a cair do galho, de tão amadurecida em todo o seu ser. É
fazer marcação cerrada sobre a presunção incomensurável dos homens. Tomar uma
pose, ora de soneto moderno, ora de minueto, sem que se dissipe a unidade
essencial. É policiar parentes, amigos, mestres e mestras com um ar songamonga
de quem nada vê, nada ouve, nada fala.
Ser brotinho é adorar.
Adorar o impossível. Ser brotinho é detestar. Detestar o possível. É acordar ao
meio-dia com uma cara horrível, comer somente e lentamente uma fruta meio
verde, e ficar de pijama telefonando até a hora do jantar, e não jantar, e ir
devorar um sanduíche americano na esquina, tão estranha é a vida sobre a Terra.
O amor acaba. 2ª- ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. © Joan A. Mendes Campos
Quem tem medo de mortadela? (Mário Prata)
Modismo é conosco mesmo. O
brasileiro adora inventar moda. E todo mundo vai atrás dela. A última do
brasileiro é "primeiro mundo". Os publicitários nativos inventaram a
expressão e agora tudo que nós queremos tem que ser coisa do "primeiro
mundo".
O carro é do primeiro mundo,
a bebida é do primeiro mundo, a mulher é do primeiro mundo. Cineastas querem
fazer filme de primeiro mundo, diretores de teatro trazem a moda lá da Europa.
E os preços, evidentemente, também são de primeiro mundo.
Será que não nos bastam os
exemplos de Portugal, Espanha, Irlanda e Grécia, que se debruçaram na mamata da
CEE e agora enfrentam uma séria recessão e desemprego?
Por que essa mania, de
repente, de querer virar primeiro mundo? De terceiro para primeiro? Não seria o
caso de fazer um estágio, antes, no segundo mundo?
Os do primeiro mundo adoram
as coisas aqui do terceiro. Por exemplo, a caipirinha. Alemães, ingleses,
americanos, suecos caem trôpegos pelas calçadas de Copacabana. Quer coisa rnais
brasileira, mais terceiromundista, mais caipira e mais barata? Mas já estão
avacalhando com ela. Agora já tem caipirinha de vodca e, pasmem, de rum.
Caipirinha sempre foi e sempre será de cachaça. Coisa de caipira mesmo. E é
esta bebida que os europeus vêm procurar aqui. Mas já meteram a vodca e o rum
nela para ficar com cara de primeiro mundo. Vamos deixar a caipirinha caipira,
brasileiros!
Toda essa introdução para
chegar à mortadela. Ou mortandela, como preferem garçons e padeiros. Quer coisa
mais brasileira que a mortadela? Claro que ela veio lá da Itália. Mas
tornou-se, talvez pelo baixo preço, o petisco do brasileiro. O nome vem de
murta, uma plantinha italiana que lhe valeu o nome. Infelizmente o brasileiro
acha que mortadela é coisa de pobre, de faminto. E o que somos nós, cara-pálidas?
A cachaça e a mortadela são
produtos do Brasil, do nosso querido terceiro mundo. Mas acontece que há um
preconceito dos patrícios contra a cachaça e a mortadela. Contra a mortadela o
caso é mais grave. Se você oferecer mortadela numa festa, vão te olhar feio.
Você deve estar perto da falência.
Neste Natal e no Reveillon
frequentei várias mesas, e em nenhuma havia mortadela. Queijos de primeiro
mundo, vinho de primeiro mundo, perfumes de primeiro mundo, até um peru
argentino eu comi. Mas mortadela que é bom, nada. Nem uma fatiazinha.
Quando o brasileiro irá
assumir que a mortadela é a melhor entrada do mundo? Quando você for para a
Europa, não adianta pedir dead her que não vai encontrar. Nem muerta dela.
Mas nem tudo está perdido.
No dia primeiro do ano almocei com o casal Annette e Tenório de Oliveira Lima,
e lá estava a mortadela, fresquinha no prato rósea. Um limãozinho em cima, um
pedacinho de pão e viva o terceiro mundo, visto lá de cima do apartamento do
Morumbi.
No mesmo dia, de noite, fui
ao peemedebista Bar Nabuco, debaixo de frondosas sibipirunas da Praça Vilaboim
e estava lá, no cardápio, toda sem-vergonha, a mortadela brasileira. Achei que
estava começando bem o ano. Vai ser um Ano Bom, como se dizia antigamente. Se
os novos-ricos do PMDB estão comendo mortadela, nem tudo está perdido. No
Gargalhada Bar mais para PT, há um excelente sanduíche de mortadela.
E, nas boas padarias do ramo
você ainda encontra a verdadeira mortadela, aquela que chega no balcão, feita
na chapa, sem queimar muito, servida em pãezinhos saídos do forno.
Vamos deixar o primeiro
mundo para lá. Vamos, este ano, tomar cachaça e comer mortadela. É muito mais
barato ser pobre. Deixemos que o primeiro mundo exploda entre eles, mesmo
tomando uísque escocês e comendo queijo fedido.
Por favor senhores
brasileiros primeiro-mundistas, vamos deixar de frescura. Mortadela é o que há.
É um barato.
Feliz 94 para todos vocês.
Muita cachaça e muita mortadela. Apesar de tudo, o primeiro mundo é triste e
melancólico. Continuemos felizes e alegres com a nossa cachaça e a nossa
gostosa mortadela.
E que os candidatos à presidência
deste nosso país do terceiro mundo não se esqueçam que o Jânio sempre se elegeu
comendo "mortandela" e não caviar do primeiro mundo.
Publicada no jornal O Estado
de S. Paulo, 5/1/1994.
A arte de ser avó (Rachel de Queiroz)
Netos são como heranças: você
os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu.
É, como dizem os ingleses, um ato de Deus. Sem se passarem as penas do amor,
sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata
de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o neto é realmente o sangue
do seu sangue, filho de filho, mais filho que o filho mesmo...
Quarenta anos, quarenta e
cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais
depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem
suas alegrias, as suas compensações - todos dizem isso, embora você, pessoalmente,
ainda não as tenha descoberto - mas acredita.
Todavia, também
obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia
da mocidade. Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige
essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu
sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de
criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram
as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos,
que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não
encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não
são mais aqueles que você recorda.
E então, um belo dia, sem
que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe
põe nos braços um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha.
Sem dores, sem choros, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de
saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe
de ser um estranho, é um menino seu que lhe é "devolvido". E o
espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância;
ao contrário, causaria escândalo e decepção se você não o acolhesse
imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava,
desdenhado, no seu coração.
Sim, tenho certeza de que a
vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela
velhice. São amores novos, profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar
vazio, nostálgico, deixados pelos arroubos juvenis.
[...]
E quando você vai embalar o
menino e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz: "Vó!",
seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.
[...]
Até as coisas negativas se
viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação
que se quebrou porque o menininho - involuntariamente! - bateu com a bola nele.
Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos
na mãozinha, os olhos arregalados, o beiço pronto para o choro; e depois o
sorriso malandro e aliviado porque "ninguém" se zangou, o culpado foi
a bola mesmo, não foi, Vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia:
não tem dinheiro que pague...
O Homem e o Tempo. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1964. © by herdeira de Rachel de Queiroz
REFERÊNCIA:
CADERNO DO PROFESSOR: CRÔNICAS, OLIMPÍADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA
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